A escravidão assalariada tem que acabar
Ainda que a muitos a expressão “escravidão assalariada” possa soar estranha – afinal o trabalhador que aluga sua força de trabalho em troca do salário é um trabalhador livre e não um escravo – o texto a seguir a utiliza nos termos em que a apresentou Karl Marx em duas obras: Trabalho Assalariado e Capital (1849) e Salário, Preço e Lucro (1865).
Ao assumir a máxima e desenvolvê-la conforme apresentada por Marx, temos consciência de estarmos vivendo o (no) tempo presente e do risco de supor uma continuidade histórica, de torná-la “contemporânea” - tão a gosto de muitos marxistas acadêmicos. Por isso mesmo, precisamos nos perguntar se é possível acabar com a escravidão assalariada e quais são, na atualidade, as indicações dessa possibilidade.
O termo é uma apropriação das ideias desenvolvidas pelos primeiros economistas burgueses na França do século XVIII, dentre os quais Marx destacou, na compilação crítica das Teorias da Mais Valia, o nome de Longuet, escravocrata convicto.
Em que consiste, para Marx, a escravidão assalariada?
Em “Trabalho assalariado e capital”, significa inicialmente que o trabalhador não é propriedade do capitalista, como é a situação do escravo. O escravo é em si uma mercadoria, comprada e vendida com sua força de trabalho, o qual podia passar das mãos de um proprietário a outro. Não era livre para dispor de si. O trabalhador assalariado, em contrapartida, dispõe de uma mercadoria que é sua, a força ou capacidade e habilidades de trabalho que pode ou não vender por um determinado tempo ou jornada. Diante da situação histórica de que se encontra despossuído de meios de produção e de vida, sua única forma de sobrevivência legal, socialmente admitida, consiste em encontrar, na classe dos compradores, o seu patrão. A situação de escravidão decorre de que a força de trabalho passou a ser uma mercadoria que o capitalista comprou (alugou) para dispor dela em seus próprios termos e intensidade durante uma jornada de 8 ou mais horas de trabalho, o tempo de vida do trabalhador para o capital. A atividade produtiva do operário durante a jornada permite ao capitalista extrair um novo valor, ou seja, pagar o salário do trabalhador e obter um valor não pago, correspondente a um tempo de trabalho excedente ou mais-valia. [1]
Em síntese: o trabalhador não pode desprender-se de toda a classe dos compradores ou dos capitalistas sem renunciar à sua própria existência e, em consequência, sem enfrentar e superar as relações sociais capitalistas e a ordem do capital.
Em “Salário, Preço e Lucro” o termo reaparece, 16 anos depois, no mesmo sentido. [2] Na parte final da obra, Marx refere-se a “escravização geral que o sistema do assalariamento implica”.
Se continuamos a usar a expressão é porque, mais de 150 anos depois das obras de Marx aqui referidas, período em que o mundo esteve envolvido em guerras mundiais e em revoluções, a escravidão assalariada se mantém, apesar de algumas conquistas sociais. Os sindicatos, antes instrumentos de resistência à exploração, tornaram-se um meio de negociar minimamente o nível salarial e as condições de trabalho sob o suposto da garantia do emprego.
A defesa do emprego passou a estar no centro da atuação sindical. Atualmente, fala-se em emprego como trabalho decente, o que se traduz na formalização dos contratos de trabalho, porque, conforme a Organização Internacional do Trabalho (1999), há o respeito pela legislação trabalhista que propicia uma vida digna aos trabalhadores. A aparente ingenuidade dos tecnocratas do trabalho a favor do capital confronta-se com a realidade e denuncia sua má-fé quando se sabe que a burguesia prefere pagar indenizações para indivíduos ou grupos, mesmo a custos elevados, do que cumprir a lei para todos. E, contrariamente ao que geralmente se supõe, o descumprimento das leis acontece também nos países do capitalismo avançado. Nesse sentido é importante mencionar o fato de que nos Estados Unidos da América, a imposição legal do salário mínimo de US$7,25 não é praticada em vários estados da federação, a exemplo do Alabama, Louisiana, Carolina do Sul, Tennessee e Mississipi. [3]
Sob a perspectiva do trabalho decente, os sindicatos passaram a colaborar com o capital na exploração conjunta da força de trabalho em nome do emprego e de uma precária proteção social. Não estamos apenas falando do Brasil, mas da Suécia como destacamos em matéria publicada neste site.
Um trabalho decente, capaz de assegurar a sobrevivência de um trabalhador e sua família é uma ilusão, uma vez que a tendência não é a do aumento do nível salarial, mas, ao contrário, seu rebaixamento até o seu limite mínimo. E, mais ainda, em condições de maior intensidade do trabalho. Apesar disso, se as coisas são assim sob o capitalismo, tal como apontado em “Salário, Preço e Lucro”, os trabalhadores precisam lutar contra os abusos do capital e aproveitar todas as possibilidades para melhorar as suas chances de sobrevivência e de respirar mais pausadamente na vida. Se não agissem assim, como assinala Marx nessa obra, os operários seriam transformados numa massa de seres famintos e moralmente degradados, incapazes de qualquer luta maior e mais abrangente.
A resistência à exploração - ainda que não colocada dessa forma - tem sido, aliás, a característica mais notável nos Estados Unidos da América, com greves massivas entre 2020 e 2023. Pode ser inspirador tomar conhecimento do que se passa entre os operários e trabalhadores assalariados no centro do imperialismo, mas as melhorias alcançadas devem ser apreciadas como são, isto é, parciais e temporárias. Vale nesse sentido, transcrever um dos parágrafos da parte final de “Salário, Preço e Lucro”.
Ao mesmo tempo, e ainda abstraindo totalmente a escravização geral que o sistema do salariado implica, a classe operária não deve exagerar a seus próprios olhos o resultado final destas lutas diárias. Não deve esquecer-se de que luta contra os efeitos, mas não contra as causas desses efeitos; que logra conter o movimento descendente, mas não fazê-lo mudar de direção; que aplica paliativos, mas não cura a enfermidade. Não deve, portanto, deixar-se absorver exclusivamente por essas inevitáveis lutas de guerrilhas, provocadas continuamente pelos abusos incessantes do capital ou pelas flutuações do mercado. A classe operária deve saber que o sistema atual, mesmo com todas as misérias que lhe impõe, engendra simultaneamente as condições materiais e as formas sociais necessárias para uma reconstrução econômica da sociedade. Em vez do lema conservador de: "Um salário justo por uma jornada de trabalho justa!", deverá inscrever na sua bandeira esta divisa revolucionária: "Abolição do sistema de trabalho assalariado!".
Devemos, entretanto, retornar ao tempo presente, pois o leitor e a leitora certamente estarão de acordo com a necessidade acabar com a escravidão assalariada [4], evidente desde quando Marx leu o “informe”, pronunciando as palavras acima transcritas, aos membros do Conselho geral Associação Internacional dos Trabalhadores. Porém, é possível? O que, na atualidade, indica essa possibilidade?
Entre a necessidade histórica e a possibilidade política há um verdadeiro salto a ser dado por gerações de trabalhadores e ativistas implicadas nas lutas em curso, ainda muito aquém, contudo, do monumental desafio da superação do capitalismo que o fim da escravidão assalariada supõe.
Ao contrário do fim da história postulado pelos apologistas da ordem eterna do capitalismo e domínio da burguesia, a história enquanto luta de classes não acabou. Começa a se reconfigurar, como assinalado no segundo texto sobre a Inteligência Artificial na crescente e cada vez mais dura mobilização das forças do capital e do trabalho em torno da duração e intensidade da jornada de trabalho. Trata-se de uma luta que interessa a todos os trabalhadores e, assim, à maioria das sociedades nos diferentes países, contra o pano de fundo da chamada “mudança climática global”.
Sabemos que enfrentamentos de classe ultrapassam os limites de lutas organizadas numa perspectiva sindical. Mas a luta pode transbordar tais obstáculos. Ativistas de organizações como Labor Noters nos EUA e Arbeiterpolitik e Arbeiterstimme na Alemanha, manifestam o mesmo entendimento, com a vantagem de estarem na linha de frente, ou mais perto dela. Aqui, situados no hemisfério sul, num país em que o sentido da história parece estar no passado, pretendemos acompanhar o processo assinalado, cuja continuidade e evolução dependem da criação de circunstâncias em que se torne impossível qualquer retorno. Não nos cabe ensinar ao mundo o que ele deve ser, mas aprender como é, na e com a luta dos trabalhadores. Façamos nosso o repto: Hic Rodhus, hic salta! A ver e participar, se e quando for possível, com os meios à altura. [5]
João Ferreira
Maio de 2024
[1] “Trabalho assalariado e capital” constitui o texto das conferências lidas por Marx na Associação dos Operários Alemães de Bruxelas em 1847, publicadas a seguir como artigos da Nova Gazeta Renana, em 1849. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1849/04/05.htm#nN72
[2] “Salário, Preço e Lucro” é um “informe” lido entre 20 e 27 de junho de 1865 nas sessões do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores, sediado em Londres, mais tarde publicado como folheto , em 1898. A primeira formulação do termo “escravidão assalariada” foi desenvolvida por Friedrich Engels em “A situação da classe operária na Inglaterra” (1844). Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1865/salario/index.htm
[3] Harold Meyerson. The UAW’s Chattanooga Victory: Score One for the North in Our Endless Civil War. The American Prospect, April 22, 2024. Disponível em: https://prospect.org/labor/2024-04-22-uaw-chattanooga-victory-score-one-for-north/
O artigo é uma pertinente análise histórica da luta de classes nos EUA tendo como foco a adesão da maioria dos trabalhadores (2.628 contra 985) da fábrica da Volkswagem em Chattanooga, Tennesse, favoráveis à sindicalização na International Union, United Automobile, Aerospace and Agriculture Implement Workers of America, mais conhecido com United Auto Workers (UAW).
[4] Escravidão assalariada significa a disponibilidade do tempo de vida na jornada de trabalho para o capital. Quem nunca trabalhou em processo de produção fabril jamais consegue se dar conta da tentativa de contínuo aprisionamento mental a que o operador se vê submetido pelo sistema de máquina sob a supervisão de um comando situado além e sobre ele. Daí, aliás, o termo super-visão. Sob esse constrangimento, a mente do operário precisa funcionar de modo semelhante a uma corrente elétrica alternada, isto é, contínua, mas com oscilações, em alta tensão. Foco permanente na atividade, com visualização do entorno imediato e flutuação controlada do pensamento, para permitir “fugas” e a respiração mais lenta, de modo a não exaurir completamente suas energias e evitar acidentes de trabalho. Contudo, esse processo pode ser interrompido seja porque o operário passa mal, ou fica doente; seja porque se revolta contra o ritmo e a intensidade imposta pela gerência capitalista. Para uma compreensão mais aprofundada desse processo sugerimos a leitura de uma análise de “Greve na Fábrica”, de Robert Linhart. Clique aqui para acessar.
[5] Em tradução literal, significa: “Aqui é Rhodes, aqui mesmo, dá o salto". A expressão latina, oriunda da fábula “O fanfarrão”, de Esopo, foi apropriada por Marx de Hegel em O 18 Brumário. Uma interpretação com a qual estamos de acordo no geral encontra-se em LavraPalavra: “Na fábula um atleta se gaba de que, em Rodes, realizara um salto estupendo e que havia testemunhas que poderiam comprovar sua história. Um espectador então comenta: “Tudo bem! Digamos que aqui seja Rodes, demonstre o salto aqui e agora”. A fábula ensina que as pessoas devem ser reconhecidas por seus atos, não por suas próprias reivindicações.” Para ler mais clique em: https://lavrapalavra.com/2021/07/05/hic-rhodus-hic-salta/