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A greve geral de 1917 em São Paulo na visão das lideranças

O texto a seguir foi escrito por volta de 1990, com o objetivo de subsidiar um curso de história das lutas operárias. Devido ao fato do curso não ter sido realizado, o texto foi deixado na “caixa box dos guardados”, onde permaneceu durante décadas.


Resolvemos publicá-lo agora porque, recentemente, José Luiz Del Roio anunciou o dia 9 de julho como data oficial da luta operária de São Paulo, em memória da greve geral de 1917 ocorrida naquela cidade durante o mês de julho. Agendou um ato público para homenagear lutadores da classe trabalhadora no Sindicato dos Padeiros de São Paulo, sito à Rua Major Diogo, 285, nesta data. Sabe-se que o dia da luta operária é o dia 1o. de Maio. O anúncio se faz, portanto, na linha das tradições inventadas, tal como referidas pelo historiador Eric Hobsbawm. Pressupomos que a criação do 9 de julho como dia da luta operária também tenha a intenção de contrapor-se à comemoração burguesa da chamada “Revolução Constitucionalista”, deflagrada em 9 de julho de 1932 contra o Governo Provisório de Getúlio Vargas.


O conhecimento da luta operária travada contra a burguesia no passado e em outros lugares é fundamental para fortalecer o sentido do movimento aqui e agora, porque possibilita uma visão de conjunto, da luta enquanto luta de classes, transmitida a partir das experiências coletivas. Pois é assim que os operários aprendem a raciocinar, a entender em que sociedade vivem e quem são seus amigos e inimigos de classe.


Eis aqui a nossa contribuição:


A greve geral de 1917 em São Paulo:

a ordem burguesa em perigo

 

Eduardo Stotz


Introdução


São Paulo é uma cidade morta: sua população está alarmada, os rostos denotam apreensão e pânico, porque tudo está fechado, sem o menor movimento. Pelas ruas afora alguns transeuntes apressados, só circulavam veículos militares, requisitados pela Cia. Antartica e demais indústrias, com tropas armadas de fuzis e metralhadoras. Há ordem de atirar sobre quem fique parado na rua. Nos bairros fabris do Brás, Moóca, Barra Funda, Lapa, sucedem-se tiroteios com grupos de populares; em certas ruas já começaram a fazer barricadas com pedras, madeiras velhas, carroças viradas (o Jornal do Commercio do Rio de Janeiro fala em bondes virados) e a polícia não se atreve a passar por lá, porque dos telhados e cantos partem tiros certeiros. Os jornais saem cheios de notícias sem comentários quase, mas o que se sabe é sumamente grave prenunciando dramáticos acontecimentos.


Este é o aspecto da cidade de São Paulo em julho de 1917 descrito no livro História das lutas sociais no Brasil por Everardo Dias, militante operário e historiador. Como inicia e se desenvolve esta mobilização das massas proletárias que toma ares de insurreição contra os poderes constituídos em São Paulo? Pelo que lutam os operários? A que resultados chega o movimento? Quais as razões deste movimento? O que expressa do ponto de vista histórico, isto é, na perspectiva das relações de classe entre trabalho assalariado e capital em desenvolvimento em nosso país? Estas são as questões que aqui pretendemos abordar de modo sucinto nesta comunicação, utilizando bibliografia conhecida entre os historiadores preocupados com o assunto.


 

Uma narrativa da greve


Nos meses de maio e junho de 1917 ocorrem greves-relâmpago, que terminam com a obtenção de pequenos aumentos salariais. Ao final do mês de junho, Edgard Leuenroth faz publicar A Camorra burguesa. Escreve: Não tardará a vindita da plebe[1]:


A gente endinheirada que até aqui ia gozando placidamente num parasitário dolce far niente, a sua vida folgada de ladrões bem sucedidos começa a inquietar-se, a sentir-se incomodada, a ter as suas custosas digestões perturbadas pelas manifestações de descontentamento que, partindo dos recantos malsões onde a plebe laboriosa abriga a sua penúria, já se vão fazendo ouvir nos bem cuidados arrebaldes da urbs em que se erguem, como uma afronta à miséria alheia.

O nosso proletariado, cuja passividade nos últimos tempos chegava quase a desencorajar os militantes mais otimistas e traquejados, premido pelas condições intoleráveis a que o sujeita a exploração capitalista, agora levada ao paroxismo, vai pouco a pouco, dando demonstrações de sua grande inquietação, que se manifesta, aqui, em queixas pronunciadas medrosamente, em surdina, ali em reclamações cautelosas e além em movimentos grevistas, mais ou menos irrequietos e já inspirados por princípios de dignidade social.

São os primeiros sintomas do grande choque entre os dois elementos antagônicos, os prenúncios da grande luta do explorado com o explorador, do oprimido com o opressor e que já não haverá, dentro dos esgotados recursos da odiosa sociedade burguesa, forças capazes de evitar.

 

Em meados de junho, começa a longa greve dos operários do Cotonifício Crespi, situado no bairro da Moóca.[2] Sob a alegação de que a vida se tornava cada vez mais difícil, 2.000 operários, dentre homens, mulheres e crianças, cruzam os braços por 20% de aumento nos salários. A resposta da empresa é o fechamento do estabelecimento fabril por tempo indeterminado.


Neste período, há uma febril atividade organizativa. Surgem ligas operárias nos bairros proletários da Moóca, Belenzinho, Cambuci, Lapa, Água Branca; sindicatos são reorganizados, como o dos chapeleiros e dos canteiros.


No início de julho, operários paralisam a Estamparia Ipiranga, de Jefet, por aumento de 20% para o trabalho normal e de 25% para o noturno. A Liga operária da Moóca apoia a greve. Enquanto prossegue a paralisação do Cotonifício, temendo que a produção estivesse sendo executada em outro local, operários conclamam ao boicote dos produtos desta empresa, no que são apoiados pela Liga operária do Ipiranga. Entram em greve os operários da Cia. Antartica Paulista. No Brás, manifestantes investem contra um caminhão da Casa Gamboa, contendo sacas de farinha de trigo. Ao anoitecer do dia 8 de julho, grande número de operários concentram-se na portaria do Cotonifício Crespi. Soldados da cavalaria prendem dois menores, os operários atiram pedras em resposta. Guardas civis intervém em apoio aos soldados. Ocorrem prisões. A polícia fecha a Liga dos Operários da Moóca e prende alguns de seus diretores. No dia seguinte, um numeroso grupo de operários do Cotonifício Crespi dirige-se à fábrica Mariângela, pertencente ao grupo Matarazzo, no Brás, e cerca a entrada com três feridos gravemente. Um deles, o sapateiro Martinez, vem a falecer às nove e meia do dia 10, na Santa Casa de Misericórdia. Entrementes estão parados 15.000 trabalhadores. A notícia da morte corre como um raio pelas fábricas e milhares de trabalhadores dirigem-se à residência da família e acompanham o féretro. Eis a descrição feita por Edgard Leuenroth:


O enterro dessa vítima da reação foi uma das mais impressionantes demonstrações populares até então verificadas em São Paulo. Partindo o féretro da rua Caetano Pinto, no Brás, estendeu-se o cortejo, como um oceano humano, por toda a avenida Rangel Pestana até a então ladeira do Carmo em caminha da Cidade, sob um silêncio impressionante, que assumiu o aspecto de uma advertência. Foram percorridas as principais ruas do centro. Debalde, a Polícia cercava os encontros de rua. A multidão ia rompendo todos os cordões, prosseguindo sua impetuosa marcha até o Cemitério. À beira da sepultura revezavam-se os oradores, em indignadas manifestações de repulsa à reação.[3]


Na volta do cemitério, realizam-se comícios. Então, acontece o assalto de uma carrocinha de pão. O ato, como uma espécie de móvel oculto que impulsiona as energias latentes das massas, desencadeia a sublevação. Diz Edgard Leuenroth que o assalto:


... Teve o efeito da chispa lançada ao rastilho de pólvora, com uma rapidez fulminante, como se um veículo de comunicação de excepcional capacidade pusesse em contato todo o elemento popular paulistano. As fábricas e oficinas esvaziavam-se, enquanto as ruas se povoavam de multidões, movimentando-se agitadas em todos os sentidos. Foi quando mais se intensificou a repetição do episódio do assalto do carrinho de pão, sendo atingidos mercearias, depósitos de mantimentos, armazéns, etc. Paralisava-se a vida laboriosa da São Paulo que não pode parar, para dar lugar a uma convulsão popular sem precedentes na vida paulistana.


Neste momento, representantes de associações e grupos proletários da capital e subúrbio reúnem-se clandestinamente (porque a liberdade de associação está suspensa) no Salão Germinal para prestar apoio aos operários em greve. Na ocasião é criado um Comitê de Defesa Proletária e apelos são dirigidos à Confederação Operária Brasileira, com sede no Rio de janeiro, e às associações operárias de todo o estado e país, para apoiar a luta do proletariado em São Paulo.[4]


Apesar do delegado geral da polícia, Tirso Martins, declarar que irá garantir a “liberdade de trabalho” nas fábricas e “assegurar a ordem”, as autoridades mostram-se incapazes de controlar a situação. De acordo com Moniz Bandeira, Clóvis Mello e A.T. Andrade[5], as tropas estão exaustas e de moral abatido. O fogo irrompe em vários pontos da cidade, sem que o corpo de bombeiros possa agir. No dia 12 de julho, de franca anarquia, o centro e arredores estão controlados pela multidão. Um carregamento de farinha do Moinho Gamba é atacado. A cavalaria investe contra o povo. A violência generaliza-se, com assalto aos veículos. O comércio da Rangel Pestana cerra as portas. O número de grevistas alcança 20.000 pessoas.


O governo foge da Capital e, na prática, a cidade fica nas mãos dos operários. Eis o que se passa então: saques de armazéns e distribuição direta de gêneros alimentícios, comícios e pancadarias; outros atos, descritos como expressão do “espírito de carnaval”, a exemplo de grupos de jovens que invadem os bondes e convencem os motorneiros a alterar o seu trajeto compõem o cenário de barricadas e tiroteios, a lembrar a todos que uma revolução pode estar acontecendo.


Diante da incapacidade da força pública paulista, o governo convoca o apoio federal. Navios da Marinha chegam ao porto de Santos, mas as tropas ainda assim não conseguem conter o proletariado.

 

As reivindicações


O Comitê de Defesa Proletária, reunido na noite de 11 de julho, após consultar as entidades que dele fazem parte, apresenta publicamente os fins imediatos a que a atual agitação se propõe, a saber:


  1. Libertação de todas as pessoas detidas por motivos de greve;

  2. Respeito absoluto ao direito de associação;

  3. Nenhuma dispensa em virtude de participação no movimento;

  4. Abolição de fato da exploração do trabalho de menores de 14 anos;

  5. Proibição do trabalho noturno para menores de 18 anos;

  6. Abolição do trabalho noturno das mulheres;

  7. Aumento de 35% nos salários inferiores a 5$000 réis e de 25% para os mais elevados;

  8. Pagamento pontual dos salários a cada 15 dias e, o mais tardar, cinco dias após o vencimento;

  9. Garantia de trabalho;

  10. Jornada de oito horas e semana inglesa;

  11. Aumento de 50% em todo o trabalho extraordinário.


Considera-se ainda que o aumento dos salários possa vir a ser frustrado pelo aumento no custo de vida: propõe-se o barateamento dos gêneros de primeira necessidade, requisitando-os no caso de especulação e açambarcamento, a redução dos aluguéis e impedimento de despejos dos inquilinos das casas cujos proprietários se opunham àquela redução.


A capacidade e a força do Comitê em representar os interesses das massas operárias em rebelião é testada com a realização do grande comício no hipódromo da Moóca. Foi neste histórico evento – um indescritível espetáculo que então a população de São Paulo assistiu... uma das maiores manifestações que a história do proletariado brasileiro registra – que a imensa multidão decide que o movimento somente cessaria com o atendimento das reivindicações expressas no memorial do Comitê de Defesa Proletária.


A polícia tenta apresentar-se, sem sucesso, como mediadora no conflito entre trabalhadores e capitalistas. Debalde, o governo paulista tentou contactar o Comitê de Defesa Proletária. É quando Nereu Rangel Pestana, diretor do jornal O Combate, toma a iniciativa de organizar uma Comissão de Jornalistas.


Então, no dia 14 de julho, os industriais e seus porta-vozes, membros da comissão dos jornalistas e do Comitê de Defesa, reunidos na sede de O Estado de São Paulo, deliberam que a citada comissão iria ter entendimento com o presidente do Estado de São Paulo, Altino Arantes, para libertar os presos, reconhecer o direito de reunião, fazer os empresários respeitar os novos contratos de trabalho...enfim, reconhecer a plataforma do movimento operário.


Com a garantia, por escrito, e com a palavra de honra de Altino Arantes de que o compromisso seria respeitado, termina a greve geral. Mas, como escreveu Gigi Damiani, educado pelos reverendos padres jesuítas, ele havia feito uma promessa com restrição mental. Então, dois meses após o fim do movimento do proletariado, inicia-se um período reacionário, desapiedado e feroz.[6]

 

As razões do movimento


O que levara o proletariado paulista a um movimento de tal envergadura? Na imprensa operária a palavra mais corrente é a palavra fome. Anarquismo? Não: fome! – é o que se afirma para deixar claro o caráter espontâneo do movimento e a responsabilidade do governo frente a especulação com os gêneros de primeira necessidade e dos industriais com o pagamento (sempre em atraso e com descontos) de salários vis, salários de fome. O partido da fome e o ventre devorando o cérebro, foi quem dirigiu a greve geral, afirma O Combate.


A fome tem razões econômicas, e estas ficam claras quando examinamos as informações sobre as limitações às importações que a primeira guerra mundial introduzira. A incipiente indústria nacional dá um verdadeiro salto, com a produção de tecidos atendendo a 50% do mercado nacional. O valor da produção aumenta, os lucros sobem, os “negócios de guerra” como café, açúcar e algodão vão de vento em popa, a balança comercial fica favorável. Especula-se, ganha-se rios de dinheiro. Mas a inflação também prospera ao lado dos altos lucros auferidos no comércio e na indústria nesta conjuntura. O crescimento econômico depara-se com uma oferta inelástica de produtos agrícolas e, pior, o governo, para estimular o crescimento dos negócios, baixa um decreto aumentando a emissão de papel moeda. A economia política do capital e os interesses da população cruzam-se então como curvas em rota de colisão e assintóticas.


As reivindicações apresentadas pelo Comitê de Defesa Proletário orientam-se para a regulamentação do contrato de trabalho – uma normalização, dentro de certos limites, da relação de exploração da força pelos capitalistas. O que chama atenção é o contraste entre estas reivindicações e a forma violenta posta em prática para alcançá-las. As coisas não podem acontecer de outra forma, lê-se na imprensa operária. Por que? Porque os capitães da indústria são ex-escravocratas, empreendedores com espírito mercantil que não toleram quaisquer ameaças à sua ordem. Para acumular sua fortuna, diz-se n’ A Plebe de 9 de julho de 1917, não conseguem vislumbrar coisa melhor do que um novo regime de servidão, mais simples e lucrativo, assegurado na mais inaudita brutalidade.


O movimento não teria assumido uma radicalização tão profunda, audácia e a coragem conjugadas a um intenso ódio de classe, caso não houvesse uma consciência disseminada entre as massas de operários de que as nossas classes dominantes são marcadas por um reacionarismo tão insensível e duro que apenas uma violência inaudita e sem concessões são capazes de modificar.


A greve geral de 1917 é um momento histórico no qual os confrontos que colocam em risco a ordem burguesa aparecem sob o signo da consciência de classe.




[1] A Plebe, 23-6-1917. Citado por Yara Aun Khoury. As greves de 1917 em São Paulo e o processo de organização proletária. São Paulo. São Paulo: Cortez Editora, 1981.

[2] A narrativa baseia-se no livro Beiguelman, Paula. Os companheiros de São Paulo. São Paulo: Edições Símbolo, 1977.

[3] A greve de 1917, O Estado de São Paulo de 27-3-1966. In: Paulo Sérgio Pinheiro e Michael M. Hall. A classe operária no Brasil, 1880- 1930. Documentos. Vol. I: o movimento operário. São Paulo: Alfa-Omega, 1971.O jornal A Nação, de São Paulo, em sua edição de 11 de julho de 1917, informa que alguns operários conseguiram alterar o percurso do féretro, para passar defronte a Policia Central e exigir a soltura de um anarquista. Conforme https://oriundibrasile.blogspot.com/2010/03/historia-especial-influencia-de_7898.html 

[4] De acordo com Luigi Bionmdi, participavam do Comitê Edgard Leuenroth, Luigi Damiani, Antonia Soares e Candeias Duarte e os socialistas Teodoro Monicelli e Giuseppe Sgai. CPDOC/FGV. Atlas histporico do Brasil: Greve geral de 1917. https://atlas.fgv.br/verbetes/greve-geral-de-1917 

[5] O ano vermelho: a Revolução russa e seus reflexos no Brasil. 2ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1980.

[6] Il movimento sindicalista nel Brasile. In: Paulo Sérgio Pinheiro e Michael M. Hall. Op. Cit.

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