Chapeuzinho vermelho
Enquanto, imóvel na cadeira de barbeiro, ouço o repórter dizer...
- Aqui é a rádio Guanabara, a sua rádio.... 100,2 Megahertz. Está na hora do... rapidinho: vamos falar com Jovelina. Alô Jovelina, como vai a moçada aí do Jacarezinho?
...entra uma outra voz que vem da cadeira ao lado:
- Tudo bandido, tinha de acabar com a raça deles...
Numa folga da navalha manipulada pelo Souza, virei um pouco o rosto para o lado direito. De soslaio, vi um senhor com aparência comum, branco, talvez perto de uns 70 anos. Os pedaços de conversa dele com o barbeiro que eu conseguia ouvir, entrecortados pelo programa radiofônico:
- ...Acertou Jovelina!
- ...Uh! uh! Uau!
...e memorizar ficaram por conta da minha atenção às navalhadas (você tem idéia do que é levar um corte de navalha devido a um movimento brusco?) do Souza, felizmente concentrado no que fazia:
- Essa bandidagem aí dos morros, não se pode fazer mais nada. Com isso aí de direitos humanos, acabou o princípio da autoridade, arrematou ele. No meu tempo não era assim, você lembra do pessoal do Getúlio?
- Lembro sim, respondeu o barbeiro.
- Então. Eu cheguei aqui no Rio, vim lá de Cachoeiro, ainda do tempo da brilhantina, quando o cabelo não desmanchava nem debaixo d'água, está certo?
- Isso mesmo.
- Ninguém podia mesmo. Não pedia identidade, entrava tudo na bordoada, no pau de tábua, pau de dois, como se dizia naqueles tempos... Deputado, criança, padre, não tinha vez. Havia agitação na rua, chegava, arrebentava. Havia autoridade...
- Havia mesmo.
- Não é como agora, vem os estudantes, essa semana foram lá e pararam a Rio Branco, se fosse naquela época, corria tudo, ninguém ficava para conferir a valentia deles. Não ficava.
- Não ficava, repetiu o outro.
Fez-se silêncio entre os dois. Talvez ele estivesse cavoucando a memória mais profunda e separando eventos, traçando a linha do bem e do mal de acordo com o princípio da ordem incontestável a que estava vinculado. O tempo passou, na rádio agora tocava música, outros fregueses e barbeiros conversavam entre si, as manicuras também, gente entrou e saiu, mas tudo pareceu burburinho contra o pesado ambiente de sigilo que cercava o passado daquele homem de aparência comum. Não seriam assim os assassinos? Gente com um oco no lugar da alma, apenas uma mente cinzenta trabalhando incessantemente em busca da perfeição de um único ato, o de destruir outro ser em nome de um princípio estabelecido por outros e que valia como a força de um deus desconhecido?
- Depois fui para Brasília, integrar a polícia do Distrito Federal, veio a ser a polícia federal. Fiquei trinta anos lá, disse de repente, retomando o curso da conversa.
- Em Brasília?
- É. Conheci todos os grandes... e de tudo quanto é canto do país. Picadas que viraram estradas de chão batido, depois rodovias. Tive família e mulheres. Foi... só parei, me aposentei quando o Figueiredo na véspera de deixar o poder, decretou um aumento de cem por cento: um presente que deixou pro Sarney...há, há!. Era hora de largar, tinha trinta e dois anos de serviço. Entreguei a carteira, o distintivo, o revólver e fui cuidar de mim. Em autoridade não acredito, porque não tem mais...
- Não é mais como nos tempos do pessoal de Chapeuzinho Vermelho, né?
- Chapeuzinho Vermelho, ninguém segurava, não havia deputado, nem padre ou criança.
- Não havia, não. Prontinho, delegado, disse o barbeiro ainda espanando os ombros do homem de aparência comum.
Agora de pé, parecia-me ainda mais comum do que o comum dos mortais; entretanto ali estava, ao meu lado, uma pessoa excepcional porque marcada exclusivamente pelo ofício da violência do Estado. Alguma coisa – não sei se os olhos sem brilho, encravados num rosto inexpressivo – evocou-me uma lembrança. Um vento quente entrou pela porta entreaberta do salão. Subitamente vi diante de mim o avatar de um guarda de longínqua fortaleza cujas vigias são varridas periodicamente pela poeira do deserto. Ao sair, disse para o barbeiro confidente:
- Olho vivo, hem? Cavalo não desce escada!
[texto escrito em 17.11.2006]
[atualizado em 01.12.2021]