IA e a estreita bitola de medição da riqueza no capitalismo - parte 2
2. A situação vigente na Alemanha
Como a chamada quarta revolução industrial, baseada na “indústria 4.0”, está acontecendo concretamente? De que forma os trabalhadores se posicionam diante dela? Para conhecer esse processo e a luta implicada, precisamos examinar as realidades nacionais. Destacamos aqui a situação vigente na Alemanha.
Não escolhemos esse país por acaso: um verdadeiro laboratório social da exploração da força de trabalho pelo capital ocorrido durante a pandemia de coronavírus (2019-2021),[10] o que lá se passou tem um registro importante, digno de ser divulgado pelo caráter da narrativa e da reflexão crítica, possibilitando-nos colocar o foco da análise na luta de classes. Referimo-nos aos artigos publicados na revista Arbeiterstimme (Voz do Trabalhador).[11]
Devemos levar em consideração antes de mais nada que a indústria metalúrgica e elétrica é o ramo industrial predominante na Alemanha, sendo particularmente afetado pela “digitalização”.[12] Por outro lado, constitui o tema de interesse central do sindicato dos trabalhadores do ramo, o IG Metall, que o debateu em seu congresso sindical realizado em outubro de 2019.[13]
2.1. Um cenário real de defensiva dos trabalhadores (2019-2021)
Para o ano de 2020, a OCDE previa, como decorrência dessa transformação, a perda de 18% dos empregos industriais e a mudança significativa em 36% dos empregos. Com base nos dados dos trabalhadores contribuintes da seguridade social, esse percentual das vítimas da racionalização industrial na Alemanha equivaleria a 6,3 milhões de empregos.
Na avaliação da direção do sindicato dos metalúrgicos, as mudanças acarretadas se expressariam em dois cenários – um positivo e outro negativo. Este último era uma síntese da realidade, uma vez que o sindicato não estava conseguindo interferir para “moldar o processo de transformação, de modo que progresso técnico também fosse social”, enquanto o número efetivo de empregos estava caindo pela metade, a desregulamentação do trabalho estava se generalizando e o rendimento mensal médio dos trabalhadores caía. Sem o poder de interferir, o IG Metall perderia 800 mil sócios ao longo de 10 anos e acabaria por se tornar uma espécie de “sindicato dos maquinistas.”
Em contraposição, o cenário positivo ou hipotético pressupunha um papel de protagonista no processo de transformação tecnológica, o qual somente seria efetivo mediante a cooperação entre capital e trabalho. Como veremos adiante, os grandes grupos capitalistas não acreditavam que progresso tecnológico andasse de mãos dadas com o progresso social e não falavam na linguagem da colaboração de classes do sindicato.
Em 2020, o sindicato mobilizou a sua estrutura baseada nos conselhos de empresas para realizar uma pesquisa de percepção da transformação industrial. As avaliações para o período até 2024 contemplavam perdas de emprego nas áreas de produção, montagem, administração e logística, devido à racionalização com a nova tecnologia, enquanto nas áreas de pesquisa e desenvolvimento, tecnologia de informação e desenvolvimento de software haveria um aumento de pessoal. Particularmente crítica seria a indústria automotiva e sua rede de fornecedores, inclusive mais intensamente nesta pelo predomínio de pequenas e médias empresas com baixo investimento em tecnologia. A imagem projetada pela Bosch dava o tom dramático da expectativa: o que requeria o trabalho de 10 operários na produção de motores, no futuro precisaria apenas de 1 operário.
A situação real da mudança tecnológica nas empresas estava pautada por um pensamento e ação de curto prazo, com apenas 18% relatando dispor de uma estratégia de futura digitalização, enquanto 19% admitiam encaminhá-la em subáreas internas. O acesso a mais informações, por outro lado, pressupunha que os trabalhadores exercessem alguma pressão. Porém isso os obrigaria a se preparar para o conflito, o que não era a expectativa de muitos sindicalistas.
A ação do IG Metall para “moldar o processo de transformação social” deveria se traduzir nas negociações coletivas encaminhadas junto às empresas pela intervenção ativa dos conselhos de trabalhadores e delegados sindicais, acompanhado de medidas governamentais, de modo a tornar possível a proteção do emprego, a saber: um subsídio de curto prazo para viabilizar o processo de transformação e restrições ao trabalho temporário e contratos de trabalho precários.
O problema imediato consistia em que os acordos coletivos existentes estavam sob forte pressão dos capitalistas, num quadro de declínio da negociação e seus resultados. Assim, se em 1996 a proporção dos empregados protegidos por acordos coletivos era de 70% na parte ocidental e de 56% na parte oriental, em 2020 havia se reduzido a 49% e 35%, respectivamente. Os empresários mostraram “o que realmente pensam da parceria social. Ou seja, nada!”. O presidente da Gesamtmetall (associação empresarial do setor industrial correspondente) ameaça abertamente com ‘o fim do acordo coletivo regional’ se as reivindicações salariais não fossem reduzidas” e a diminuição da jornada de trabalho adiada. “Eles até querem ‘reformar’ a jornada legal de 8 horas.” Ademais, a interferência dos conselhos de trabalhadores e delegados foi “estritamente rejeitada”, sequer esquivando-se de exigir restrição ao direito de greve: paralisações de um dia inteiro só deveriam ser permitidas após uma arbitragem fracassada.
O IG Metall declarou as negociações com a Gesamtmetall encerradas e se mobilizou para o enfrentamento local, empresa por empresa, uma tarefa bastante difícil se considerada, por exemplo, a situação no Estado da Saxônia, no sudeste da Alemanha. Isso porque num total de 1.700 empresas existentes no ramo metalúrgico, apenas 140 possuíam acordos coletivos regionais. O que suscitou a observação: “Mas mesmo aí teria de se travar uma ‘luta doméstica’”. A organização sindical na parte oriental do país estava reduzida à indústria automobilística, os patrões impedindo a organização de conselhos de trabalhadores e o trabalho do sindicato muitas vezes mediante terror e intimidação.
No final de janeiro de 2020 a direção do IG Metall propôs a abertura de um acordo coletivo para o futuro. A proposta foi recusada liminarmente pelo lado patronal. O desencadeamento da pandemia do coronavírus, em março daquele ano, suspendeu a iniciativa e, em nome de “soluções solidárias”, o sindicato aderiu às medidas então encaminhadas, bastante semelhantes às adotadas aqui no Brasil (redução da jornada de trabalho e de emprego, subsídio mensal de curta duração, nenhuma compensação devida ao aumento do custo de vida). Apesar da dificuldade de mobilização imposta pela emergência sanitária, o acordo com vigência até o final de dezembro dificilmente poderia merecer a denominação de “acordo coletivo de solidariedade” que lhe conferiu o IG Metall.
2.2. Uma retomada com muitos problemas (2021-2022)
No início de 2021, o sindicato retomou o processo de negociação apresentando proposta de reajuste salarial de 4% e de ajuste da jornada de trabalho vigente na parte oriental (38 horas) nos termos da vigente na parte ocidental (35 horas). A reação empresarial, bloqueando tudo e, mais ainda, defendendo a visão de que os horários de trabalho do ocidente é que deveriam se ajustar aos do oriente, desencadeou a greve. “A obrigação de paz terminou” em 1º de março por meio de greves de advertência massivas – as quais mobilizaram 800.000 trabalhadores em abril. Somente então o patronato aceitou negociar. O acordo realizado em Dusseldorf, capital do estado da Renânia do Norte-Vestfália, propiciou o modelo que passou a ser adotado no país, com a adesão da Gesamtmetall. Pode-se dizer que há uma síntese da experiência patronal alcançada durante a pandemia: um “bônus de reconhecimento” pela falta de reajuste salarial no valor de 500 euros, o estabelecimento de um “dinheiro de transformação” (pagamento para o processo de transformação tecnológica) no valor inicial de 2,3% do vencimento mensal e aumento para 18,4% em 2022 e 27,6% em 2023. Apesar de pago de uma só vez, o valor poderia ser usado para compensar parte dos salários quando a jornada fosse reduzida, por exemplo, para uma jornada semanal de 4 dias. Nesses casos a decisão seria tomada de comum acordo entre as empresas e os conselhos de trabalhadores. Greves de advertência de 24 horas foram realizadas para pressionar as empresas da Saxônia que não queriam adotar o acordo, mais efetivas na indústria automotiva e sua rede de fornecedores, como anteriormente havíamos assinalado.
Apesar da cláusula de que a introdução de transformação tecnológica será objeto de negociação em acordos coletivos para o futuro, o que se logrou alcançar não permitiria comemoração face aos resultados concretos das campanhas realizadas. Do ponto de vista material, face a falta de aumento nas tabelas salariais em dois anos consecutivos, a eliminação de pagamentos especiais como feriados e gratificação natalina acarretaram um empobrecimento relativo dos trabalhadores. Em termos da medida de uma semana de 4 dias com o recurso do “dinheiro de transformação”, a avaliação de sua utilidade na transição para a produção digitalizada parece óbvia, mas não elimina o risco das demissões. Acrescentaríamos que esse é exatamente o alvo da “transição”: o aprendizado da melhor forma de aumentar a exploração da força de trabalho, de extração da mais-valia com a digitalização negociada. Por último, a unificação das negociações coletivas nos dois lados da Alemanha foi abandonada por “soluções operacionais”, o que na prática deixa de fora a parte oriental. Por tudo isso o título da matéria “Não é um Grande Sucesso” é pertinente, embora seja pouco contundente diante da realidade.
Há uma implicação política não levantada na análise de Arbeiterstimme decorrente dessa divisão da força do trabalho diante do capital que, aliás, somente tornou-se evidente recentemente. Referimo-nos ao fato de que a coalizão “semáforo” que governa o país (SPD/Verdes/Liberais),[14] caso venha a adotar a posição do IG Metall em favor de “empregos seguros” e co-gestão da transformação tecnológica, virá a tornar-se um “governo dos trabalhadores”. Uma pretensão difícil de sustentar nos termos da própria coalizão, mas igualmente por toda a experiência histórica da luta dos trabalhadores, inclusive nos enfrentamentos sindicais dirigidos pelo IG Metall. Contudo, tal entendimento pode ser assimilado de outra forma pelos que são deixados de lado e para trás, ou seja, a maioria dos trabalhadores do leste e uma parte não desprezível do oeste da Alemanha. A eleição de Donald Trump nos EUA e a ascensão da extrema-direita em todo o mundo após a crise de 2007-2009 – e que, no Brasil, gerou o fenômeno político do “bolsonarismo” – deixa patente o que significa de fato, em termos políticos, uma visão sindicalista estreita, baseada nos supostos ganhos econômicos de uma política de colaboração com o capital que despreza os trabalhadores não organizados.
3. O futuro imediato
Passados três anos da decretação da pandemia do coronavírus, a experiência da exploração da força de trabalho pelos capitalistas nas novas condições conduziu a poderosa Gesamtmetall da Alemanha a formular a necessidade de estabelecer um novo marco legal do tempo de trabalho para o século XXI. Flexibilidade na organização do tempo de trabalho na semana e “abertura” para aumentar a jornada de 8 horas, eis suas palavras-de-ordem.
Em contrapartida, no site de IG Metall afirma-se a relevância da redução da jornada de trabalho como uma luta começada em 1984: “A greve em torno da semana de 35 horas começou há 35 anos.” O release da manchete: “Há 35 anos, lutamos gradualmente pela redução da jornada de trabalho de 40 para 35 horas na indústria metalúrgica da Alemanha Ocidental. A disputa industrial com greve e lock-out durou quase sete semanas.”
Como se desenvolverá esse processo e, particularmente, qual será o comportamento dos trabalhadores? Ainda não sabemos: estamos na história do tempo presente. Uma certeza podemos ter: o capitalismo continua a medir a riqueza produzida mediante a incorporação da ciência e o conhecimento social, pela exploração da força de trabalho, quer dizer, de acordo com a bitola estreita da mais-valia.[15] A superação desse sistema por uma nova sociedade, mediante a coletivização dos meios de produção e sua gestão direta pelos trabalhadores de modo a orientar a produção com o objetivo de satisfazer as necessidades sociais, não advirá automaticamente, em consequência das contradições internas do capitalismo. Será o resultado de uma ruptura, de um processo revolucionário ainda não definido e incerto.[16] Em decorrência, entendemos, como Marx, que o capitalismo se desenvolve em meio ao conflito de classes. É o tempo social de nossa época. Portanto, a resposta à pergunta relativa ao futuro somente pode ser: a luta decidirá.
Eduardo Stotz
Acesse aqui o texto completo
Notas:
10 Na ausência de uma revolta política aberta dos trabalhadores, houve uma espécie de adaptação do capitalismo à interrupção do funcionamento normal face a indisponibilidade de vacinação em massa. As medidas de controle sanitário impostas em diversos graus e formas em cada país acarretaram isolamento social e quarentena, com fechamento de milhares de pequenos negócios e suspenção das atividades das grandes empresas. Esse ajuste foi possível sobretudo em razão das medidas e garantias estatais de redução de salário proporcionalmente à da jornada de trabalho – as quais permitiram, mesmo sob o risco da exposição direta à infecção do coronavírus, a continuidade do trabalho produtivo na indústria, agropecuária e serviços de infraestrutura. Ressalve-se que a “adaptação” em meio à mortalidade generalizada não se deu sem resistência, porém acabou por se impor, inclusive com a colaboração dos sindicatos dos trabalhadores por todos os lados.
11 A narrativa apresentada a seguir tomou por base os artigos “Digitalização: maldição ou benção?” e “IG Metall- Formatura 2021” publicados no site de Voz do Trabalhador – Revista de teoria e prática marxista. Arbeiterstimme é um pequeno grupo comunista que emergiu do grupo Arbeiterpolitik em 1971. O núcleo, situado em Nuremberg, publica a revista trimestral Arbeiterstimme (Voz do Trabalhador). Insere-se na tradição da Oposição do Partido Comunista (KPD-O) do período de Weimar, surgido em 1928/29 enquanto oposição à política de ultra-esquerdista do Partido Comunista Alemão (KPD) sob a liderança de Thälmann. Com a liderança de Brandler e Thalheimer, a Oposição defendia a política de frente única, enquanto o KPD praticava a política de Oposição Sindical Revolucionária dentro da central sindical da Alemanha que, com a fatídica "teoria do social-fascismo" de Stalin, cimentou a divisão do movimento operário alemão e assim ajudou a causar a derrota sem luta contra os nazistas. Informações extraídas de https://www.arbeiterstimme.org/ueber-uns
12 A transformação da produção industrial e dos serviços pelas novas tecnologias – “manufatura” ou ainda “indústria 4.0”, na terminologia empresarial – será aqui genericamente representada como “digitalização”.
13 IG Metall – Industriegewerkschaft Metall, sindicato da indústria metalúrgica fundado em 1949. Trata-se de um sindicato nacional, organizado em escritórios regionais correspondentes aos estados da Alemanha e que, desde o final dos anos 1990, passou a incluir trabalhadores da indústria de tecelagem e confecções e os das indústrias madeireiras e de plásticos. Está filiado à DGB - Deuts-cher Gewerkschaftsbund (Confederação Sindical da Alemanha). O IG Metall é o maior sindicato alemão: em 2017 tinha mais de 2 milhões de associados e se organiza em conselhos de empresa na indústria metalúrgica e de material elétrico, principalmente nas maiores empresas. Informações baseadas no site do sindicato disponíveis em https://www.igmetall.de/ueber-uns/geschichte
14 Representado nos sinais de trânsito pelo SPD-Sozialdemokratische Partei Deutschlands (cor vermelha), Bündnis 90/Die Grünene (cor verde) e Freie Demokraten (cor amarela).
15 A formulação é de Marx, constante nos chamados Grundrisse: Manuscritos Econômicos de 1857-1858: Esboços da crítica da Economia Política. São Paulo: Boitempo; Rio de janeiro: Ed. UFRJ, 2011. Ver o desenvolvimento da reflexão de Marx especialmente nas páginas 587-589 desta edição. O trecho em que nos baseamos é o seguinte: “O roubo do tempo de trabalho alheio, sobre o qual a riqueza atual se baseia, aparece como fundamento miserável em comparação com esse novo fundamento desenvolvido, criado por meio da própria grande indústria.” (p.588)
16 A foto da imagem de capa da postagem extraída de Voz do Trabalhador n.206 – 2019/2020 traz na parte superior uma frase em alemão que significa “A emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores.”